Interview

Vozes Líquidas

Esta é uma entrevista coloquial entre dois artistas da mesma cidade em momentos de carreira e de vida pessoal totalmente diferentes. A conversa é entre Marcioz (25) e Jocy de Oliveira (85). Marcioz preparou as perguntas e Jocy as respondeu.

Jocy de Oliveira é uma das mais renomadas compositoras de música contemporânea da América do Sul. Seja em óperas, instalações, peças multimídia, teatro e mesmo cinema, Jocy é pioneira no trabalho com mídia mista e busca repensar os formatos operísticos convencionais. Ela era tida em alta estima por nomes lendários do século XX como Igor Stravinski, Iannis Xenakis e John Cage, para os quais e com os quais se apresentou. Além disso, trocou correspondências com Cage, disponíveis em seu livro “Diálogo com Cartas”i.

Jocy tem uma longa carreira e uma discografia extensa, que demandariam um artigo três vezes o tamanho deste para conseguir cobrir. Ela foi a primeira compositora no Brasil a trabalhar com música eletrônica, em sua peça icônica "Apague Meu Spot Light" (1961)ii. O trabalho de Jocy é crítico, denso, sofisticado, e se aprofunda em diversos tópicos políticos de maneira confrontadora; frequentemente o descrevo como musicalmente unapologeticiii e o considero o trabalho cristalino e complexo, disposto a desafiar e expandir as noções sobre música.

A voz que vocês leem neste momento é a de Marcioz. Nasci em Curitiba, como Jocy, e também trabalho na esfera da música eletrônica inovadora. Sou um grande fã da obra de Jocy e ela é uma ídola pra mim. Penso que, de alguma forma, apesar da grande diferença entre nossas pesquisas e/ou convicções sônicas, temos princípios similares. Eu não gosto de falar sobre mim e sobre o que já “conquistei” porque não gosto da ideia de funcionalizar minha “credibilidade”. O mais importante é que saibam que eu faço música e tento usá-la pra expandir signos sociais. Acredito profundamente no conhecimento prático e sofisticado da população de baixa renda. Acredito que caminhamos pra frente apenas quando aceitamos raça e colonização como fatores determinantes de uma conversa. Acredito que o arquivo é mais poderoso do que qualquer PIB ou discurso acadêmico. Acredito que o tempo é cruel.

Eu acredito é na rapaziada.

Que segue em frente e segura o rojão.

Eu ponho fé é na fé da moçada.

Que não foge da fera e enfrenta o leão

— Gonzaguinhaiv, “E Vamos à Luta” (1981)

Suggested Listening

Marcioz: DE/COLONIAL WRITING$ (jovendeu$, 2020)

Marcioz: MULATO TRAGIDY (jovendeu$/Nurtured Ideas, 2019)

Jocy de Oliveira: A Música Século XX de Jocy (Discos Nada, 2021)

Jocy de Oliveira: Estórias para voz, instrumentos acústicos e eletrônicos (Soundohm, 2017)

MOi, Jocy. Eu queria começar essa conversa me apresentando pra você; imagino que ainda não me conheça, assim como quem tá lendo. Meu nome é Marcioz. Eu tenho 25 anos e, como você, sou de Curitiba. Cresci no bairro Caiuá, lá no CICv, perto do Fazendinha. Joguei muito futebol por lá até querer fazer música. Sou filho de uma bailarina preta que era madrinha de bateria na escola de samba Embaixadores da Alegria, e de um violinista de rua polonês que tocava na Rua XV de Novembro. Sou mulato de cabelo pixaim, faço música experimental e hoje moro em Berlim. Minha música é bastante ríspida, mas eu gosto dela (posso te mostrar uma peça?). Tem gente que fala até que é inovadora (pode isso?!) e eu acho que é por isso que tô aqui conversando com você. Eu não sei se você ia gostar ou o que ia achar dessa música “nova”, mas, acima de tudo, eu sou um grande fã seu e penso muito no seu trabalho. Sou muito impactado pelo seu material, que me inspira muito pra continuar… Eu acho que, no fim, eu só tô no rolê que eu tô porque você, o Arrigo Barnabé e o Waltel Branco mostraram firmeza. Queria perguntar pra você: Como você tá? Como estão as coisas? Como está se sentindo hoje? Muito obrigado por disponibilizar seu tempo pra gente…

JdOOlá. Esta questão geográfica é muito relativa. Levamos conosco nossas origens, nossa vida. A minha foi pelo mundo... vivi em diferentes países mas sempre penso no mar do Rio de Janeiro. Curitiba na minha vida foi um acaso. Nasci na Rua Aquidaban na casa de meus bisavós, mas não vivi lá e não carrego laços para além de me lembrar do triste rito depassagem da morte de meu pai e de minha avó; eles não moravam mais lá, porém aconteceu de estarem em Curitiba naqueles dias da morte.

Gosto de Berlim... aí estive muitas vezes e apresentei 5 de minhas óperas, inclusive a première de Kseni – Die Fremde no Berliner Festspiele.

MJocy, eu fiquei pensando quando me chamaram pra falar com você sobre como é interessante essa coisa toda, porque a Sound American é lá dos Estados Unidos, lá de Nova Iorque (chique no último!); e a gente é da mesma cidade, tanto CWB quanto RJ (passei bastante tempo pelo Rio também, acho que acabei me tornando um “micro carioca”). O que você pensa sobre este encontro? No fim, é necessário uma instituição do primeiro mundo pra gente se encontrar... Você acha que isso diz alguma coisa?

JdOMorei vinte anos em Nova York. O encontro poderia ter sido lá ou em qualquer lugar. Além do mais, hoje tudo se confunde no mundo virtual...

MTem como você me contar um pouco da sua infância em Curitiba? Você saiu de lá muito nova. Tem alguma coisa da cidade que te chamou atenção na época? Eu vi algumas entrevistas suas e é muito comum o pessoal te perguntar sobre seu trabalho, mas eu fico muito curioso sobre o que você acha das coisas.

JdOÉ a primeira vez que alguém me questiona tanto sobre o lugar onde nasci. Já que isso lhe parece relevante, vamos lá.

Morávamos no Batel, em uma casa futurista com móveis art déco, um jardim muito grande e um cachorro pastor alemão que pertencia a minha mãe e que uma manhã, por ciúmes dela,mordeu minha perna, me deixando uma cicatriz. Tinha menos de 3 anos quando nos mudamos para São Paulo e lá me criei e estudei. Restou a cicatriz.

MEu estava lendo uma entrevista sua para Gazeta do Povo e lá você disse o seguinte:
Em termos comparativos, Curitiba é uma cidade com muito mais potencial que Florianópolis (SC), por exemplo, que é menor. Mas já fizeram eventos comigo lá, e aqui nada”, lamenta a compositora. "É uma pena, não há dúvidas. Mas não sei os motivos. É um mistério.” (Gazeta do Povo, 2013)vi
Achei meio engraçado isso porque eu passei por uma situação muito parecida. Eu também não consigo ter muita oportunidade em Curitiba, e até por isso acabei partindo de lá. Minha experiência de exposição de material sempre veio muito mais de fora do Brasil, principalmente da Europa e dos EUA. Gente de outras cidades do mundo – e do Brasil também – vêm falar comigo e se interessam, mas de Curitiba é bem pouco. Tem como você comentar um pouco pra gente sobre essa relação sua com Curitiba? Você acha que isso é sintomático da cidade, ou somente coincidência?

JdOSim, isso reflete uma mentalidade provinciana. Muitos estados no Brasil apoiam e valorizam seus artistas. O Paraná, ao contrário, ignora.

M Você disse que se sente muito distante do seu primeiro LP, Música do Século XX>vii, e que sua trajetória seguiu outra direção. Eu me sinto muito distante do meu primeiro trabalho oficial; ouvi-lo hoje é quase que assistir a uma outra pessoa. Teria como você comentar sobre como foi essa transição à posição em que você se encontra como compositora de vanguarda, seja com eletroacústica mista, multimidialidade ou ópera? Qual seria seu conselho para um jovem que decidiu também tomar outro rumo? Você encontrou algum estresse de uma possível insistência do público nessa Jocy mais antiga?

JdONão foi transição. Creio que fazemos as mesmas coisas só que encontramos formas diferentes para nos expressarmos, às vezes mais complexas, às vezes mais simples (o que é bem difícil). Mas não posso dizer que mudei radicalmente; apenas, espero, que tenha amadurecido e, portanto, aprimorado meu processo de criação. Em várias etapas de minha vida, minhas peças foram consideradas pioneiras por diferentes razões. Sempre busquei a invenção em lugar da rotina e continuo na mesma busca. Naquela época do lançamento da “Música século XX”, tinha vinte anos e meu destino na música já estava traçado como pianista dando concertos como solista de grandes orquestras na Europa, EUA e Brasil. Nos anos sessenta, executava muito música contemporânea e muitos compositores escreveram para mim como Berio, Xenakis, Cage, Santoro, além de ter sido solista duas vezes sob a regência de Stravinsky. Ao mesmo tempo, estava começando a conceber um drama eletrônico, “Apague meu spot light” (em parceria com Luciano Berio), e que foi estreado nos Teatros Municipais do Rio e de São Paulo durante a VI Bienal de Arte, em 1961. O excepcional elenco contou com Fernanda Montenegro, Sergio Britto, Ítalo Rossi e direção cênica de Gianni Ratto. Esta peça causou grande impacto e ainda hoje é lembrada como a primeira vez que se fez música eletrônica no Brasil.

Quanto ao vinil “Música século XX”viii, foi um evento único.

Conselho? Siga sua intuição e trabalhe muito.

MOlhando de longe, parece que existe um momento em que você faz um passo claro de rompimento com a “mpb”. Eu penso muito nessa divisória que foi proposta e aceita em larga escala sobre “música popular” e “música clássica”. Dá pra se dizer que a gente classifica “música de concerto” como a música tocada por orquestra com solistas visitantes, e “música popular” a gente pode classificar como qualquer música que já existiu – um rápido exemplo seria que tanto jazz quanto techno são considerados tipos música popular. Sempre fico pensando o porquê do Adorno estar tão necessitado de começar essa afirmação. Por “coincidência”, aqui na Alemanha existem dois termos para dois tipos de funding: Ernste Musik e Unterhaltungsmusik. O fundo recebido para os projetos depende diretamente da categoria classificada no projeto. Eu acho interessante que no brasil o “música séria” virou “clássica” e a “música de entretenimento/leve” virou “música popular”. No Brasil é até engraçado porque a gente tem essa gíria, dizemos “do povão” pras coisas mais pobres, bagunçadas, etcétera e tal, mas a verdade é que no “popular” a gente acaba sabendo quem toca, escuta e financia essa música. Como você se vê nessa divisão? Parece que a gente caminhou para abandonar isso, mas a estrutura que montou esse negócio tá bem forte, ainda. Como você vê a música brasileira no espectro da vanguarda?

JdOEsta questão “divisória” música clássica e música popular é algo que existe em todo mundo. Na França vão além e chamam “musique serieuse”, “musique savante”, “musique classique” versus “musique populaire”. Na Alemanha também se diz Klassik Muzik. Em inglês “classic and pop music”. Mas existem os casos que se cruzam, aqueles mais difíceis de rotular. Não vejo muito essa divisão ser abandonada. Nós vivemos cada dia mais em bolhas, tribos… são poucas as exceções que perpassam diferentes campos e extrapolam barreiras.

MAcho que eu acabo me interessando nessa história da história da música porque tá muito conectado ao que a gente acredita ser inovação. Às vezes parece pra mim que essa narrativa de complexificação gradual da música, ou até de um “apimentamento sonoro”, é toda cheia de mentirinhas, de “migué”, “papo pra boi dormir” como dizia minha minha mãe. Uma vez eu estava assistindo uma palestra online do Salloma Salomão para o IMS na série “1922 – Modernismos em debate”. Ele comentou de forma rápida sobre a etnia “Banda Linda”, do centro da África, que faz, como o Salomão diz, “música concreta usando flautas e chifres”. Logo que ouvi isso, passei a achar a “descoberta” do Schaeffer meio sem nexo. Quando ele fez esse paralelo, não pude evitar de pensar na “Clapping music” do Steve Reich, no Semba, ou até no flamenco e no grupo Fundo de Quintal. Essa situação toda de ser sempre eles os que contam o que aconteceu e o que vai acontecer me faz pensar nas formas como a música tem sido descrita. Às vezes eu fico pensando se não foi essa coisa toda de se posicionar como o escritor de tudo que fez o atonalismo e o serialismo acontecerem. Fico até em dúvida se era uma demanda ou necessidade que realmente havia, ou um grande “se vem deles, não é música, não conta.” Não consigo deixar de perguntar: Quem está escrevendo o século XXI?
Jocy, o que eu quero perguntar é o seguinte: pra você, o que é novo na música? Como a gente sabe o que é novo? Quem diz o que é novo? “Novo” pode ser eu e os meus amigos também? Vão deixar o Mano Brownix entrar na história como inovador? E o DJ Gui da ZOx? E o Naná Vasconcelosxi? Vão deixar um cara que escreveu um álbum com o nome “Africadeus” entrar?

JdOAcho que a invenção é um tanto como na ciência. Nós todos contribuímos um pouco até que de repente alguém encontra um caminho novo...

No meu caso, há muitos anos venho focalizando uma investigação em diversos campos, com música, teatro, vídeo, textos, instalações, numa convicção de que a expressão sonora é inerente a todas as formas de vida e tentando atingir um desenvolvimento orgânico da composição/execução, sem fronteiras entre vida e arte.

Em geral, em minha obra, a escolha do material sonoro soma elementos de minha experiência musical e de vida. Assim, minha impressão de um sadhu (homem santo) cantando uma raga a Shiva num templo de Déli é tão importante quanto a reminiscência de um contraponto renascentista, uma cantilena, o uso de sons gerados por computador, ou a herança de anos e anos tocando as obras pianísticas de Messiaen e vivenciando sua nova noção do tempo.

Este tecido sonoro pode se desenvolver de séries múltiplas, nuvens de sons em constante transformação de texturas, uma tala, a tradição post-serial europeia, a não periodicidade oriental, a atemporalidade da natureza, o acaso, ou nossas raízes culturais antropofágicas. É a integração de todos os elementos e minha visão do mundo que toma a forma de mais de trinta anos de vida em diferentes países e de convívio com alguns mestres do século XX.

Pode ser que, às vezes, a música de outras culturas – muitas delas chamadas no Ocidente de “culturas primitivas” – sejam mais inovadoras aos nossos ouvidos do que unicamente aformalidade herdada de um eurocentrismo. O mundo não é só hemisfério Norte ocidental!

Mas eu tive a sorte de ter vivenciado as descobertas do final dos 1950 e 1960 até 1970. Tive a oportunidade, com vinte anos, de trabalhar e colaborar com John Cage, Berio, Xenakis, Stockhausen, Messiaen, Foss, e, principalmente, Stravinskyxii. Naquelas décadas, vivia nos EUA e Europa. Foram anos extremamente inovadores e instigantes. Para mim, momentos divisores de águas nos planos cultural e político. Mesmo naquela época impactante já se questionava a “vanguarda”; talvez a vanguarda só tenha existido com o dadaísmo no início do século XX...

MVocê acha que temos como ditar alguma narrativa sobre nós mesmos? Sobre a nossa música, o nosso jeito de ser, nossa comida?
Você comentou numa entrevista sobre como hoje quem tem trazido muito apoio pro seu trabalho e feito um certo tipo de resgate (seja por menção ou por estudo) de seu material é o “pessoal do techno”. Eu achei muito bacana quando mencionou isso porque sinto que nos últimos anos a comunidade de música experimental eletrônica no Brasil tem tomado a rédea das próprias narrativas. Eu sinto que a gente tem que rever muita coisa, mas, principalmente, começar a estudar, nos dar acesso a nós mesmos. Quando descobri seu trabalho eu me lembrei muito do choque que senti quando descobri o Luís Gamaxiii ou o José do Patrocínioxiv ou Olly Wilsonxv. Parece até uma história escondida, uma contraproposta presa na garganta…
Seu trabalho sempre teve muito respaldo e sobreviveu muito bem ao efêmero e ao passar do tempo. Mas parece que agora tá tendo um olhar e uma narrativa diferentes sobre ele. Sinto que as pessoas estão fazendo um resgate e se encontrando nele. Acho que, aos poucos, seu nome está passando por um processo de personificação, quase que de uma acentuação na linha do tempo da música. Como você se sente com isso?

JdONão sei. Vocês veem isso de fora, são capazes de formular esta narrativa. Eu estou mergulhada, trabalho, não penso muito no que sobreviverá. Mas fico contente que alguns tenham esta percepção e pressintam esta dimensão.

MJocy, sua obra é realmente cheia de momentos que me chamam muito a atenção por terem um caráter bastante unapologetic. Pra mim, parece que é como se você tivesse muita clareza sobre o que quer dizer em uma peça enquanto trabalha nela… logo me vem à cabeça “Nenhuma Mulher Civilizada Faria Isso”xvi, ou “Inori à Prostituta Sagrada”xvii. Como você lidou – e lida – com a expectativa do público nesses momentos?

JdONão me preocupo com o mercado, com o público. Consegui trilhar um longo caminho sem concessões e quero continuar assim.

Quanto aos segmentos de “Kseni – A estrangeira” ou “Inori à prostituta sagrada”, são óperas multimídia. Há décadas tenho explorado a atemporalidade dos mitos em minhas óperas multimídia. Procuro um momento de intuição poética, um momento de verdadeira cumplicidade entre artistas e audiência, um momento que nossa percepção de tempo e espaço se expanda e mergulhe em nosso interior. Absorver o tempo em sua essência não estruturada torna-se uma das questões primordiais na minha música.

Isto me leva a trabalhar com a visão atemporal dos mitos nas sociedades matriarcais da Antiguidade, como a “prostituta sagrada” nos contos de fadas, a “Diva” como personagem fadada à morte ou a vítima nas óperas convencionais. Em “Kseni – A estrangeira”, resgato o mito da Medeia, transportada para a contemporaneidade como mulher transgressora – discriminada, heroica –, e todos aqueles mitos ligados à figura da mulher e seus valores contidos nos fragmentos de meus textos para várias de minhas óperas multimídia.

MEu lembro que vi você comentando certa vez que uma pesquisadora estava fazendo uma coleta de seu material e defendendo que sua discografia/obra deveria ser estudada de maneira não linear. Teria como comentar um pouco sobre isso? Às vezes penso que, apesar do jeito que o relógio anda, a gente é muito menos linear do que parece.

JdOSim existe uma pesquisa nesse sentido de apresentar minha obra como uma constelação estelar onde elas se integram, se interligam e seguem caminhos simultâneos, onde não existe tanto a preocupação da linearidade. Desde o início, nunca houve esta preocupação em minhas obras, abordando o tempo intuitivo, a forma circular sem começo ou fim ou um estado de tempo quântico, se assim posso dizer.

MEm sua trajetória, você explorou muito as possibilidades que a “mídia mista” tem pra oferecer. Há alguns meses, fui comissionado um trabalho para um festival e a pergunta não era se havia algum aspecto visual envolvido, mas sim qual seria ele. Hoje, os meios de consumo de mídia estão de alguma forma indissociáveis de um tipo qualquer de experiência visual. Qual era seu entendimento dessa ideia de “artes misturadas” no século passado em comparação a hoje?

JdOSim, vivemos numa sociedade orientada visualmente onde a escuta está se perdendo, mas acho que o(a) artista não precisa ser guiado pela demanda do mercado. Se sua concepção artística demandar uma multimidialidade, é isso que deve seguir; do contrário, não vejo razão.

MJocy, você contou por email que está trabalhando numa ópera cinemática nova. Tem como você comentar um pouco sobre seu processo criativo e sobre como é diferente das primeiras peças que você publicou?

JdOTrata-se novamente da busca por uma intersemiose da música com outras artes, ou melhor, uma multimidialidade nos moldes de minha bem sucedidae internacionalmentepremiada ópera cinemática “Liquid Voices – A história de Mathilda Segalescu”, produzida em 2017 no SESC em São Paulo e filmada como longa metragem nas ruínas do Cassino da Urca, Rio; exibido e premiado em festivais de cinema em Londres, Nice, Madrid, Antuérpia, Varsóvia, Israel, Nova Iorque e Santiago do Chile.

Minha nova ópera cinemática, também um filme de longa metragem intitulada “Realejo de vida e morte”, mostra a solidão de dois personagens em cenas de realismo fantástico que transitam pelo imaginário de um mundo desabitado no cenário desolado de um planeta em extinção. Já terminei o roteiro e a música, mas o trabalho está só começando e espero poder lançá-lo em 2023.

MPenso muito sobre minha juventude como uma navalha de dois lados. Por um lado, sinto um entusiasmo e uma raiva pra explorar no meu trabalho; por outro, eu me sinto um genuíno ignorante, que precisa ver muita coisa pra poder fazer alguma afirmação. Tem algo que você sabe hoje que você implementaria no seu processo criativo aos seus 25 anos?

JdOAcho que não. A vida é viver cada momento; sabemos que querer ser Fausto não funciona...

MEu queria agradecer a você por seu tempo novamente. Foi uma grande honra poder te enviar essas perguntas. Foi com muita sinceridade…

JdOO prazer foi meu, desejo-lhe sucesso em sua trajetória por esse mundo afora.

iPublicado no Brasil pelo SESI-SP, 2014. Também publicado na França, com o título Dialogues avec mes lettres, pela Honoré Champion, 2015.

iiEssa icônica peça multimídia por Jocy de Oliveira é considerada como a primeira vez que se fez música eletrônica no Brasil. Sem acesso à tecnologia envolvida na criação desse tipo de música, Jocy contou com a colaboração do célebre italiano Luciano Berio, que lhe enviava fitas por correio diretamente do Studio di Fonologia Musicale, em Milão.

iiiTradução livre: “impenitente”, que não pede perdão, que não paga penitência.

ivCantautor brasileiro, filho de Luiz Gonzaga, o “rei do baião”.

vCidade Industrial de Curitiba, o maior bairro de Curitiba, onde o distrito industrial da cidade está localizado.

viGazeta do Povo, 20 de setembro de 2013.

viiÁlbum de estreia de Jocy de Oliveira, à época com 23 anos de idade. A Música Século XX de Jocy foi lançado pela Litoral Records, em 1959.

viiiReprodução ipsis litteris de como Jocy se referiu ao LP.

ixUm dos principais nomes do rap no Brasil, Mano Brown é líder do icônico grupo Racionais MC.

xDJ carioca.

xiLendário percussionista brasileiro, Naná Vasconcelos (1944-2016) teve uma carreira esplendorosa, acumulando colaborações com nomes como Egberto Gismonti, Milton Nascimento, Pat Metheny, B.B. King e David Byrne, dentre muitos outros.

xiiO livro “Diálogo com cartas”, de Jocy, compila 120 cartas escritas para ela por alguns dos mais proeminentes criadores do século XX – Prêmio Jabuti de Literatura 2015, publicado também na França pela Honoré Champion com o título “Dialogue avec mes lettres”.

xiiiLuís Gama (1830-1882) foi um advogado, poeta e jornalista brasileiro, considerado o maior abolicionista do país. Gama era um dos poucos intelectuais negros em uma época em que o Brasil ainda não havia abolido a escravidão, tendo sido ele próprio um escravo ao longo de sua juventude. A escravidão foi oficialmente abolida em 1888, seis anos após a morte de Gama em decorrência de diabetes.

xivFarmacêutico, jornalista e escritor negro brasileiro. José do Patrocínio (1853-1905) foi co-fundador da Sociedade Abolicionista Brasileira, junto a Joaquim Nabuco (1849-1910), e escreveu o “Manifesto da Confederação Abolicionista do Rio de Janeiro” (1883), dentre várias outras obras.

xvOlly Wilson (1937-2018) foi um compositor e instrumentista negro dos Estados Unidos, reconhecido na cena da música contemporânea. Wilson foi responsável pelo primeiro programa de conservatório focado em música eletrônica no mundo, no conservatório de Oberlin.

xviSegmento 4 da ópera “Kseni – a estrangeira” (2003-2006), de Jocy de Oliveira.

xviiA terceira ópera de Jocy, de 1993; é a primeira de uma trilogia abordando questões do feminino. Nesta, Jocy explora a figura mitológica da “prostituta sagrada”.